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sábado, 27 de outubro de 2012

Anúncio Antigo 24: as eleições de 1982


 

No Anúncio Antigo de hoje vamos lembrar as eleições para governador de São Paulo de 1982. O país vivia os derradeiros suspiros da Ditadura Militar comandada por seu último general, João Baptista Figueiredo. A abertura transcorria como prevista pelo ex-presidente Ernesto Geisel e por seu braço direito, o general Golbery do Couto e Silva: "lenta, gradual e segura". E ponha lenta nisso. As primeiras eleições diretas para presidente vieram apenas em 1989, sendo que a Ditadura havia terminado em 1985. Em um período de 10 anos vieram o fim da censura; do AI-5 (Ato Institucional que permitia a cassação de parlamentares pelo presidente, entre outras coisas); a anistia aos presos políticos, mas sem punições aos criminosos e torturadores; a reforma partidária que pôs fim ao bipartidarismo (e que fez surgir muitos dos partidos que ainda estão por aí, entre eles o PMDB, o PT, o PTB e o PDT) e finalmente a eleição direta, mas em um primeiro momento apenas para governador de Estado. Eleição para as prefeituras das capitais veio somente em 1985.
A reforma partidária em 1979 foi uma tentativa de perpetuar ainda mais a Ditadura Militar, pois manteve o partido do governo, chamado de PDS (Partido Democrático Social, que na verdade era a antiga ARENA) e que na prática desmembrou o antigo MDB (Movimento Democrático Brasileiro) para que surgissem os demais partidos de oposição. A eleição de São Paulo foi importante para testar esses novos partidos e se a estratégia de manter o partido do governo forte funcionaria. Era também a oportunidade para a oposição do antigo MDB, que foi capitaneado pelo deputado federal Ulysses Guimarães, de obter o controle do Estado politicamente mais importante da federação.



Em São Paulo, os candidatos mais fortes eram Franco Montoro pelo PMDB e Reynaldo de Barros (imagem acima, na década de 1990, quando foi secretário de Maluf na Prefeitura de São Paulo) pelo PDS. Os demais teriam poucas chances, entre eles, Luis Ignácio "Lula" da Silva pelo PT, o ex-presidente Jânio Quadros pelo PTB (Jânio fazia o seu retôrno à vida política após o afastamento imposto pela Ditadura) e Rogê Ferreira pelo PDT. A eleição ainda incluia a escolha de deputados federais e o destaque, no caso de São Paulo, foi o ex-governador Paulo Maluf, com o seu número muito fácil de guardar: 111. Lula e o Partido dos Trabalhadores passaram pela primeira grande experiência nas urnas e os candidatos da legenda, em grande parte, vieram dos sindicatos e das lideranças trabalhistas. O partido fazia jus ao nome. O bordão da campanha era: "Trabalhador vota em trabalhador, Lula para governador". Em sua primeira experiência eleitoral, Lula obteve o quarto lugar. Naquele momento havia muita resistência por parte do eleitorado conservador ao discurso radical do PT e a candidatos oriundos da classe operária.
A grande expectativa que existia era com relação à sucessão do general Figueiredo e como esta seria encaminhada. Seria a reta final da abertura ou o prolongamento da Ditadura por meio de um candidato civil apoiado pelos militares e eleito pelo Colégio Eleitoral (Congresso e delegados estaduais que na época elegiam, por via indireta, o presidente)? Neste último caso, um nome já estava sendo colocado, o do ex-governador de São Paulo, Paulo Salim Maluf. Bem, o que veio depois já virou história. A emenda do deputado federal Dante de Oliveira que previa as eleições diretas foi rejeitada pelo Congresso em 1984 e a eleição acabaria sendo indireta com a vitória de Tancredo Neves do PMDB sobre Paulo Mafuf (que não conseguiu unir todo o PDS em torno de seu nome e gerou dissidências que possibilitaram a eleição de Tancredo).
O destaque da eleição para governador daquele distante ano de 1982 (há exatos trinta anos) foi a vitória oposicionista nos Estados mais importantes. Em São Paulo, Franco Montoro derrotou Reynaldo de Barros, em Minas Gerais venceu Tancredo Neves, no Paraná a vitória foi de José Richa e no Rio de Janeiro... Bem, no Rio existe até hoje uma história mal contada das apurações que teriam sido manipuladas, com o apoio da TV Globo, para impedir a eleição de Leonel Brizola do PDT. Ao final da contagem, a sua vitória acabou sendo confirmada.
Embora tenha obtido 59% dos votos em todo o país, a oposição (que agora contava com o PT, PTB, PDT, além do PMDB) não conseguiu a maioria no Congresso Nacional (considerando Câmara e Senado juntas) e no Colégio Eleitoral que deveria escolher o novo presidente em 1985. A Ditadura Militar entrava em uma agonia prolongada.



De qualquer forma, a oposição capitaneada pelo PMDB obteve uma importante vitória em São Paulo. Esse partido era ainda formado pelo chamado "MDB histórico", com Ulysses Guimarães, Montoro, Tancredo Neves, Freitas Nobre, Orestes Quércia e que representava a esperança de reverter os descaminhos dos governos ditatoriais. Montoro (na imagem acima, quando era governador) recebeu um Estado cheio de dificuldades em função da gestão malufista, que o antecedeu e teve que passar boa parte do governo colocando as finanças em ordem. Além disso, o país se encontrava em recessão e com os problemas decorrentes da dívida externa, o que reduziram as possibilidades de novos investimentos. Além, é claro, da inflação. Montoro dizia ter feito um governo de "pequenas obras" e não as "obras faraônicas" e dispendiosas de seu antecessor. Aliás dois antecessores, Maluf (que deixou o Governo para concorrer a deputado) e José Maria Marin, que era o vice de Maluf e terminou o seu mandato (ele mesmo, que agora é presidente da CBF). Montoro pagou um alto preço por isso, mas o PMDB conseguiu eleger o sucessor, Orestes Quércia. Aliás, foi a eleição seguinte para governador, em 1986, que gerou a dissidência dos históricos do PMDB com Quércia, que se assenhoreou do partido. A dissidência formou depois o PSDB (Partido da Social Democracia Brasileira). O "PMDB histórico", como o próprio termo indica, ficou na história...
O Anúncio Antigo de hoje foi publicado no jornal "O Estado de São Paulo" de 12.11.1982.
Crédito das imagens: Revista Veja (Reynaldo de Barros) e Wikipédia (Franco Montoro).

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

A mostra "Elvis Experience"





Para todos aqueles que de uma forma ou outra se interessam pelas raízes do rock'n'roll, a exposição "Elvis Experience" em cartaz no Shopping Eldorado na capital paulista é um bom momento para ver de perto algumas relíquias relacionadas a esse gênero musical e ao seu primeiro grande astro: Elvis Presley (1935-1977). Da sua origem pobre na cidade de Tupelo, no Estado do Mississipi, até a fama e riqueza conquistadas através de sua carreira artística, a mostra totaliza em torno de 500 peças originais provenientes da mansão do cantor em Graceland, atualmente um museu. Por iniciativa de sua viúva, Priscila Presley, o Brasil foi escolhido para sediar a primeira grande exposição relativa ao cantor fora dos Estados Unidos, muito em função da enorme quantidade de fãs que o artista tem por aqui.



A mostra obedece a uma ordem cronológica, começando com a infância do cantor (na foto acima, Elvis entre os seus pais, Gladys e Vernon). Dessa fase, podem ser vistos os seus boletins escolares originais, como também uma ficha para emprego onde um Elvis já adolescente manifesta o desejo de trabalhar com o público. A influência da cultura afro-americana e da "black music" foi muito forte na formação do cantor, sobretudo depois que a família Presley transferiu-se para Memphis, no Estado do Tennessee, em 1948. Nesta cidade, Elvis passou a ter contato com o blues, a música gospel, o country, o rhythm and blues que vieram a influenciar o nascimento do rock'n'roll propriamente dito. Pelo rádio, Elvis ouvia o jovem B. B. King, Muddy Waters, Charles Brown entre outros artistas negros. Ao mesmo tempo, passou a frequentar o reduto da música negra, na famosa Beale Street de Memphis. Vale lembrar que essa região do meio-oeste americano era o centro da resistência contra a discriminação racial nos Estados Unidos (o pastor e líder negro Martin Luther King foi assassinado nessa cidade em 1968).
A família de Elvis passou por muitas dificuldades na década de 1940, incluindo a prisão de Vernon Presley por oito meses, após ter falsificado um cheque. A mudança de Estado e de cidade teve relação com a procura por trabalho e a oportunidade de receber ajuda do governo para conseguir moradia. Sim, parte da sociedade americana ainda dependia da estrutura de apoio social criada pelo New Deal do governo Roosevelt, como por exemplo, a Lei Nacional de Habitação de 1934, que permitiu a construção de casas populares geridas pelos municípios.




O início da carreira de Elvis ocorreu na minúscula gravadora Sun Records, cuja fachada localizada na Union Avenue em Memphis foi reconstituída para a exposição. Sam Phillips, proprietário dessa gravadora, teria dito que ficaria milionário se encontrasse um branco que cantasse como um negro. Justamente nesse momento, em 1954, Elvis Presley apareceu na gravadora para fazer testes e sob a orientação de Phillips estava moldado o primeiro grande astro do rock. O sucesso definitivo veio pelas mãos do polêmico empresário "Coronel" Tom Parker, que soube levar Elvis para a fama, mas também transformou-o em uma máquina de ganhar dinheiro. O escritório do empresário foi reconstituído dentro da mostra, com a mesa, a cadeira e vários objetos originais, inclusive com as miniaturas do cão Nipper, símbolo da gravadora RCA Victor (imagem acima).
A televisão projetou a imagem de Elvis em todo o território americano e pode-se dizer que ele se tornou o primeiro grande astro desse novo veículo de comunicação, que ganhava popularidade na década de 1950. Elvis apareceu nos programas mais importantes da TV americana da época, como o Steve Allen Show, o programa de Milton Berle, o show dos irmãos Dorsey e finalmente, o conhecido Ed Sullivan  Show. Este último exigiu que a imagem do cantor fosse mostrada apenas da cintura para cima, para que o seu rebolado não parecesse tão sensual ao público mais tradicional.
1956 é apontado como o "ano de ouro" da carreira do cantor. No início desse ano, pelas mãos do Coronel Parker, Elvis deixou a pequena gravadora Sun para assinar com a RCA Victor, a qual permaneceu ligado até o final de sua vida. Os seus primeiros discos feitos na Sun Records foram adquiridos pela nova gravadora e também podem ser vistos na mostra. Nesse mesmo ano, Elvis iniciava também a sua carreira no cinema com "Ama-me com Ternura", um faroeste que trazia a canção título como destaque, "Love Me Tender". O cartaz original do filme e de todos os que Elvis fez podem ser vistos na sala especialmente dedicada aos seus anos em Hollywood.



Contudo, no auge de sua popularidade em 1957, Elvis é convocado para o serviço militar. Muitos estudiosos viram isso como uma forma de enquadrar o cantor dentro dos valores morais da sociedade americana e conter um pouco o seu aspecto rebelde e libertário. Na verdade, Elvis não era tão rebelde como parecia ser, apegado à família e de certa forma inseguro, o que levou-o a depender demais dos conselhos do Coronel Parker. Um espaço da exposição é dedicado ao período militar, com os seus uniformes (imagem acima), botas e capacetes. 
A década de 1960, logo após o Exército, trouxe um Elvis mais contido, com um repertório musical voltado para as baladas e canções românticas, o que não significa que não tivesse qualidade. Por outro lado, a sua carreira cinematográfica deixou a desejar. Os seus filmes não tiveram maior significado a não ser pela sua própria presença. Os roteiros eram repetitivos, cantar e correr atrás das garotas. Elvis tinha plena consciência disso, tanto que no final da década colocou um ponto final na sua experiência como ator. 



Na sala dedicada aos seus filmes podemos observar que os dois últimos, "Elvis é Assim"(1970) e "Elvis Triunfal" (1972), foram documentários de seus shows. Na imagem acima, vemos um dos destaques da mostra, o macacão branco que aparece no filme "Elvis é Assim" e que se tornaria a marca registrada do cantor no seu retorno aos espetáculos a partir de 1969.





De fato, a volta de Elvis aos palcos ocorreu em 1968 no "Elvis Comeback Especial" pela rede de TV NBC. Foi quase uma década longe das apresentações ao vivo. Este especial foi o momento mais importante de Elvis na televisão, revivendo os antigos sucessos de sua carreira e mostrando energia para um recomeço. O final desse show é mostrado em um telão onde ele interpreta "If I Can Dream", canção que encerra o programa. Na sala seguinte está o famoso terno branco usado nesse mesmo especial (imagens acima, mostrando o final do especial e o terno usado no programa). 



Em seguida vêm a parte mais importante da exposição com as peças originárias da mansão do cantor e as roupas utilizadas por Elvis em vários momentos de sua carreira. No primeiro item vieram alguns exemplares de sua coleção motorizada, como as motos e dois automóveis, uma Ferrari Dino e um MG conversível (imagem acima) usado no filme "Feitiço Havaiano" (1961).








Mas, não há dúvida de que a parte mais interessante é a referente ao vestuário do cantor, principalmente os macacões ou "jumpsuits", onde o destaque maior é o que foi utilizado no especial "Aloha from Hawai" de 1973 e conhecido como "Eagle", por ter a estampa da águia americana (imagens acima). Esse show foi o primeiro a ser transmitido ao vivo, via satélite, para vários países. Foi o último grande momento de Elvis. A partir dessa época, a carreira do cantor entrou em um declínio irreversível.



Os críticos afirmam que a década de 1970 foi a pior fase de Elvis, quando ele recorreu a um repertório musical mais popular e distante do "hard rock" do início de sua carreira. Mas, a mostra "Elvis Experience" traz mais referências dessa época, que têm também os seus fãs, com os exageros do cantor e as roupas exuberantes, no melhor estilo Las Vegas. Em 1969, Elvis formou uma banda que o acompanhou até a sua morte. Vários desses músicos, entre os quais o guitarrista James Burton, o baterista Ronnie Tutt, o pianista Glen Hardin e o maestro Joe Guercio se apresentam neste mês de outubro no Brasil, no espetáculo "Elvis in Concert".  
Na década de 1970, Elvis já não estava mais no topo das grandes estrelas do rock e era visto como brega ou ultrapassado. Além disso, já estava mais gordinho. Mas teve também os seus bons momentos, como o já citado show no Havaí e a única apresentação feita por Elvis em Nova Iorque, no Madison Square Garden em 1972 (na imagem acima, o paletó e a camisa usada pelo cantor, na entrevista coletiva que antecedeu a esse show). 




Um exemplo do ritmo intenso de trabalho de Elvis nessa década é o contrato feito em uma toalha do International Hotel de Las Vegas pelo Coronel Parker em 30.07.1969. O empresário de Elvis exigiu que a extensão para mais duas temporadas fosse assinado na própria toalha, na falta de papel (imagem acima).
Os abusos alimentares e o uso indiscriminado de remédios contribuíram para o excesso de peso, sobretudo nos seus últimos dois anos de vida (o cantor faleceu em 1977). Poucas informações sobre os últimos momentos de Elvis podem ser vistas na exposição, exceto uma sala onde estão colocadas as manchetes dos jornais que anunciaram a sua morte e um curioso videotape do Jornal Nacional do dia 16 de agosto daquele ano, onde o apresentador Cid Moreira apresenta a notícia sobre o óbito do cantor.




As imagens e fotos que ilustram o "Elvis Experience" mostram o cantor em pleno vigor físico e magro. Contudo, dois meses antes de ser encontrado morto no banheiro de sua mansão, Elvis já estava completamente fora de forma e mostrando sinais do declínio de sua saúde (como mostra a imagem acima do fotógrafo Peter Gould, tirada pouco antes da morte do cantor). As imagens de Elvis Presley no final de sua vida estão sendo depuradas ou mesmo escondidas do grande público. Contudo, para os que escrevem e comentam a respeito do primeiro grande ídolo do rock é importante lembrar que a máquina de fazer dinheiro o consumiu no final de sua vida. 



Elvis trabalhava muito, fez centenas de shows na década de 1970, às vezes dois no mesmo dia. Por outro lado, ele não foi o único a ser tragado pelo ritmo estressante de viagens e turnês. O mundo do rock está repleto de exemplos semelhantes. Como destacou o grande Eric Hobsbawn, um dos papéis do historiador é o de lembrar aquilo que os outros indivíduos querem esquecer.




Neste caso, lembramos que a vida do rei do Rock não era tão dourada quanto os objetos que estão na mostra (na imagem acima, o disco de ouro referente ao programa "Elvis Comeback Especial" de 1968, que alcançou um milhão de cópias vendidas).
Outro aspecto da vida do cantor era o grande número de auxiliares, funcionários e guarda-costas que o cercavam. Era a conhecida "máfia de Memphis", verdadeiros parasitas que giravam em torno de Elvis, que teve a fama de ser uma pessoa muito generosa com os amigos. Elvis chegou a dar aos mesmos presentes caros como automóveis e até casas. Na mostra pode ser observada uma enorme quantidade de cheques que eram doações para instituições de caridade e obras assistenciais. A arrecadação de seu famoso show no Havaí em janeiro de 1973 foi toda revertida para uma organização que promovia o combate ao câncer.
O seu último show, gravado para a rede de televisão norte-americana ABC, pouco antes de sua morte, é uma imagem lamentável de seus últimos momentos. A própria família e os seus herdeiros ainda relutam em lançar esse especial no mercado de vídeo, tal era o seu estado físico, inclusive chegando a esquecer as letras das músicas. Mas o seu talento vocal ainda podia ser apreciado.
Algumas observações cabem à mostra. As salas não estão providas de revestimento acústico para impedir a interferência das músicas dos demais ambientes. Por exemplo, no telão que mostra o final do show de 1968 é possível ouvir ruídos das músicas das outras partes da exposição. No final  da mostra está a loja de lembranças do cantor, com camisetas, bonés, canecas, copos, chaveiros e um grande número de objetos com referências ao astro. Muitos vão imaginar o predomínio do mau gosto. Não, não é o caso. Por exemplo, bonés e camisetas com a estampa do selo do seu primeiro disco na gravadora Sun Records são discretos e bonitos. O único inconveniente é o preço absurdamente alto dessas recordações. Nada abaixo de 40 reais. Portanto, quem quiser alguma lembrança vá com o bolso (ou o cartão) preparado...
Para ver:
PERÍODO: 05/09/2012 (quarta-feira) a 05/11/2012 (segunda-feira)
LOCAL: Shopping Eldorado (estacionamento descoberto)
ENDEREÇO: AV. Rebouças, 3.970 – Pinheiros. São Paulo (SP).
HORÁR
IO: De segunda a segunda, das 10h às 22h.
Classificação Etária: Livre
VENDAS: http://www.ingressorapido.com.br/BuscaPrincipal.aspx?pesq=elvis
INFORMAÇÕES: 4003-1212

Para saber mais:
DANCHIN, Sebastian. Elvis Presley e a revolução do rock. Rio de Janeiro, Editora Agir, 2010. 
Crédito das Imagens: Fotos de Elvis nos shows: Guia do visitante do Elvis Experience. Foto de Elvis feita por Peter Gould: Getty Images 1970s. Köneman, 2004, p. 218. Demais fotos: acervo do autor.



domingo, 7 de outubro de 2012

Hebe Camargo e os Anos de Chumbo



Não há como negar a importância que teve a apresentadora Hebe Camargo para o cenário artístico. Sua trajetória se confunde com a própria história da televisão brasileira inaugurada em 1950 (acima, Hebe em foto de David Drew Zingg de 1969). 



Hebe esteve presente no porto de Santos, quando os equipamentos trazidos pelo jornalista Assis Chateaubriand chegaram ao Brasil para a inauguração da TV Tupi (como mostra a foto acima, de 1950, à direita de terno e chapéu branco está Chateaubriand. Hebe é a terceira da direita para a esquerda com vestido estampado). 



Por outro lado, também não há como negar que o seu público apresentava um nítido traço conservador característico da classe média urbana, sobretudo a paulistana, da qual ela representava uma espécie de modelo a ser seguido (acima, a cantora e apresentadora em 1950). Hebe acompanhou o crescimento desse segmento social com a acelerada urbanização a partir da metade do século XX. Apesar de suas origens humildes, ela encarnou esse papel de ícone das donas de casa por mais de cinquenta anos, principalmente nos seus programas de entrevistas, cujo padrão foi moldado nos tempos da TV Record, na década de 1960. Seu programa noturno era líder de audiência e marcou o auge da emissora comandada por Paulo Machado de Carvalho. Hebe se comunicava de forma simples e direta com o seu público. As suas atrações eram puro entretenimento, sem grandes reflexões ou críticas. Por isso, não teve grandes problemas com os generais que davam plantão em Brasília nos tempos da ditadura militar (1964-1985), muito pelo contrário, convivia bem com eles. 
Para os que a criticavam por não ter diploma escolar, ela exibia em sua casa o "Diploma homenagem a Hebe Camargo, pela colaboração prestada na divulgação do primeiro aniversário do governo do Presidente Costa e Silva". O mesmo contava ainda com a assinatura de três ministros. A frivolidade e superficialidade de suas falas eram alvo de duras críticas por parte de intelectuais e críticos da alienação promovida pela televisão. Em 1969, quando perguntada a respeito do presidente militar Arthur da Costa e Silva (1967-1969), afirmou gostar do mesmo: "Você viu, ele chorou no dia da posse. Homem que tem capacidade de chorar é porque é bom, não tem veneno na alma, pode compreender o problema dos outros. Que pena que ele esteja doentinho...".
Contudo, em 1969, o seu programa apresentava alguns sinais de desgaste agravados pela censura da própria Ditadura Militar, a existência de entrevistas impostas e os desencontros da equipe de produção. O Brasil já vivia as consequências do Ato Institucional nº 5, que cerceava a liberdade de expressão. A própria emissora paulista entrava em um período de declínio após três incêndios seguidos, que destruíram os seus auditórios.
Em uma quase entrevista dada ao renomado jornalista José Hamilton Ribeiro para a revista Realidade, de novembro de 1969, ela demonstrava muita tristeza com relação às críticas que lhe eram feitas e muito sentida quando lembravam de sua pouca escolaridade. Segundo Hamilton, ela simplesmente chorava ao ler ou ouvir tais comentários, algo que, na visão daquele jornalista, refletia uma insegurança por parte da apresentadora. 



Hebe achava que não tinha uma boa bagagem cultural para ser artista, mesmo quando comparada com apresentadores que também estudaram pouco, como Chacrinha e Silvio Santos (na foto acima, Hebe e Abelardo Barbosa, o Chacrinha, no início da década de 1960). Nessa mesma época, um rapaz em São Paulo chegou a anotar os erros que a apresentadora cometia em suas entrevistas, como o de perguntar o número de integrantes de um sexteto, a idade de um irmão gêmeo sabendo qual era a do outro e prometer que levaria o teatrólogo Ibsen (1828-1906) ao seu programa para comentar as suas peças. Por outro lado, há setenta anos, quando a televisão começou, ninguém era especializado em comunicação através de curso superior e para os que trabalhavam, seja na frente ou atrás das câmeras, tudo era aprendizado. Com Hebe não foi diferente. 


O programa de Hebe Camargo exibido na TV Record a partir de 1966 era o mais importante da televisão brasileira (na foto acima, Hebe entrevista Maurício de Souza). Mas é preciso lembrar que, por trás da atração, havia uma equipe altamente qualificada atuando na produção da mesma, conhecida pelo nome de "Equipe A". Os seus integrantes eram Antônio Augusto Carvalho (Tuta), Nilton Travesso (importante diretor e produtor, que depois comandaria o Fantástico na Rede Globo), Raul Duarte e Manuel Carlos (o próprio, futuro autor de telenovelas). Esses produtores pesquisavam e vasculhavam os assuntos tratados no programa, principalmente aqueles mais em evidência. No palco, Hebe ainda contava com a jornalista Cidinha Campos que a auxiliava, caso a apresentadora esquecesse de alguma coisa. 


Entre os entrevistados que passaram pelo sofá de Hebe Camargo estavam o então governador de São Paulo, Abreu Sodré, o prefeito Faria Lima, o ator Procópio Ferreira, a comediante Dercy Gonçalves, a Miss Universo Ieda Maria Vargas, o médico sul-africano Christiaan Barnard (que realizou o primeiro transplante de coração) e o ator estadunidense Jonathan Harris, conhecido pelo seu personagem Dr. Smith na telessérie Perdidos no Espaço, que também era exibida pela TV Record (na foto acima, o ator e a apresentadora, em 1969). A lista de pessoas que aguardavam para serem entrevistadas em seu programa, no final de 1969, tinha mais de 2.200 nomes. Em torno de 8 mil entrevistas foram recusadas pela produção e muitos tentavam obter uma participação oferecendo altas quantias. Foram três anos e meio no ar sem férias e sem nenhuma falta. Hebe era uma grande profissional com relação aos seus compromissos. 
Outro entrevistado foi o já citado jornalista José Hamilton Fernandes, correspondente na Guerra do Vietnã. Em 1968 teve parte da perna decepada após ser atingido pela explosão de uma mina. Recuperado, foi convidado para o programa de Hebe. Tinha receio do estilo da apresentadora e de que esta se referisse a ele como "gracinha". Hamilton chegou a ser aconselhado a não participar do programa, pois conforme já mencionamos, nos meios jornalísticos, Hebe era vista como uma entrevistadora com pouca formação. Contudo, o jornalista notou a forma e a desenvoltura com que a apresentadora conduziu a entrevista, dirigindo-se a ele como se já o conhecesse há muito tempo. O programa transcorreu bem e teve grande repercussão. A ironia é que coube depois a Hamilton fazer a reportagem com a própria Hebe para a revista Realidade, então uma das mais importantes do país.  


Hebe Maria Monteiro de Camargo nasceu em 1929, na cidade de Taubaté em uma família de nove filhos, sendo que as duas primeiras filhas morreram antes de completar dois anos. O pai de Hebe, Fêgo Camargo (na imagem acima, ao lado de Dona Ester, mãe de Hebe, em foto de 1969) ganhava a vida como violinista e tocava no cinema durante a exibição dos filmes, que na década de 1920 eram mudos e acompanhados com fundo musical ao vivo. Quando Hebe nasceu, os filmes sonoros já estavam chegando nas salas de cinema e o "Seu Fêgo" perdeu o trabalho.


Contudo, em 1932, São Paulo se levantava contra o Governo Provisório de Getúlio Vargas na Revolução Constitucionalista e o pai de Hebe foi incorporado ao Exército de São Paulo como músico da banda militar (na foto acima, Hebe com aproximadamente quatro anos). 



Talvez o passado do pai como ex-combatente de 1932, tenha contribuído para as futuras posições conservadoras da apresentadora no cenário político paulista, como o notório apoio dado ao político Paulo Maluf, décadas depois (na foto acima, Hebe no dia 9 de julho de 1954, nas comemorações do aniversário do Movimento Constitucionalista de 1932).



Com doze anos, Hebe trabalhava como arrumadeira e começava a frequentar programas de calouros inspirando-se em Carmem Miranda (acima, Hebe aos 18 anos em 1947). Seguindo o estilo do trio vocal norte-americano The Andrews Sisters, Hebe formou com a sua irmã Stela e as primas Helena e Maria, o "Quarteto Dó-Ré-Mi-Fá" (Hebe era o "Ré"). Depois do fim do quarteto, Hebe ainda chegou a formar uma dupla caipira com a irmã Stela: Rosalinda e Florisbela.



Mais tarde já atuando como cantora (acima, Hebe em 1954), lhe sugeriram um outro nome artístico que soasse melhor ao público: Magali Porto. Hebe não aceitou a ideia. Na década de 1950 existia uma superstição de que o nome dos artistas que faziam sucesso tinham cinco sílabas, como por exemplo, Car-mem Mi-ran-da, Or-lan-do Sil-va ou Fran-cis-co Al-ves. Bem, Hebe Camargo continuava tendo cinco sílabas. 



Como contratada da Rádio PRG2 Tupi de São Paulo, pertencente aos Diários Associados (de Assis Chateaubriand), Hebe percorreu o país se apresentando como cantora e inaugurando várias emissoras de rádio do grupo (acima, Hebe cantando no rádio). Hebe ficou conhecida nessa época como a "estrelinha do samba". 



Em 1945 seguiu carreira solo e no ano seguinte lançou o seu primeiro disco. Em 1949 chegou a atuar no cinema e mais tarde em alguns filmes do conhecido comediante Mazzaropi (acima, uma rara foto de Hebe Camargo de maiô, de 1951). 



No início da década de 1950 Hebe iniciou a carreira de apresentadora na Rádio Nacional e depois na antiga TV Paulista, canal 5, na época comandada pelo empresário Vitor Costa, com quem, diziam as más línguas, a apresentadora teria tido um caso. Trata-se de algo nunca confirmado (na foto acima, de 1957, Hebe já como contratada da TV Paulista). 


Nesta última emissora apresentou o programa "O Mundo é das Mulheres" por nove anos (imagem acima), atração que chegou a ser diária. Na televisão, Hebe encontrou o veículo ideal para exibir as suas qualidades como cantora (que para muitos críticos não eram tão boas) e, principalmente, apresentadora. Para isso, precisou retocar a sua aparência, pois não era tida como fotogênica. Segundo uma matéria da revista O Cruzeiro de 1963, teria sido Dermival Costa Lima da TV Paulista que sugeriu a mudança, através da maquiagem e aparando as sobrancelhas grossas. 


Em 1957, Hebe tingiu os cabelos de loiro pela primeira vez, o que acabou se tornando a sua marca registrada (na foto acima, Luciano Calegari, futuro braço direito de Silvio Santos e Hebe Camargo, ainda na época da TV Paulista, no início da década de 1960). O programa "O Mundo é das Mulheres" tornou-se um dos maiores sucessos da televisão. 


Apesar de apresentar o programa também no Rio de Janeiro, sua carreira de apresentadora firmou-se mesmo na capital paulista, onde recebeu o título de "A Madrinha da TV" e de "Estrela de São Paulo" (na foto acima, de 1960, Hebe ao lado do comediante Borges de Barros, no programa Praça da Alegria da TV Paulista). No programa ainda tinha um quadro chamado "Calouros em Desfile", o qual lhe trazia lembranças do início de sua carreira como cantora de rádio. 


O sucesso e o prestígio da agora apresentadora Hebe Camargo permitiram a ela a realização de alguns sonhos de consumo, como ter automóveis de luxo (foto acima de 1963, Hebe e seu Chevrolet Impala), jóias caras e residir num bairro elegante de São Paulo. 


Apesar de ser uma profissional pioneira e ativa da televisão, Hebe Camargo (na foto acima, em 1963, na TV Paulista) tinha uma posição tradicional em relação ao papel da mulher, afirmando que quando se casasse teria que abandonar a carreira artística. Num depoimento para a revista O Cruzeiro em setembro de 1963, Hebe declarou que "o casamento exige da mulher uma dedicação que não pode ser repartida". A fala teria sido influenciada por seu futuro marido, Décio Capuano, que não aprovava a carreira artística de Hebe? Fica aqui a questão. 
De acordo com a outra matéria citada anteriormente, da revista Realidade de 1969, a fama de namoradeira acompanhava Hebe nos tempos de cantora. Nessa época ela fazia uso de um colar de argolas que enfeitava o decote de seu busto, o que dava margem a comentários do tipo: "Você desmancha os noivados, mas mantém as alianças junto ao peito, hem?" Dizia-se que Hebe era a mulher mais cortejada do mundo artístico nos anos de 1950. Hebe teve muitos amores, chegando a ser noiva três vezes, inclusive com um membro do clã Matarazzo. Este último caso teria durado dois anos e após a separação, Hebe devolveu todos os presentes que ganhou como namorada e noiva. Uma amiga da apresentadora teria dito que, se ela tivesse ficado somente com as jóias não precisaria trabalhar mais. Contudo, teve também suas desilusões amorosas, uma das quais com um famoso animador de auditório por quem se apaixonara. Contudo, ao comparecer a um de seus programas para prestigiar o seu grande amor, notou que este usava uma aliança e que a sua batalha amorosa estava perdida. A matéria da revista Realidade não identifica o tal apresentador e nem a época em que o fato ocorreu. 




Apesar das tantas paixões, Hebe só veio a se casar aos 35 anos com o empresário Décio Capuano, de quem teve seu único filho, Marcelo (nas imagens acima, o casamento e a família reunida na casa de Hebe, no bairro do Sumaré em São Paulo, no ano de 1968). Na verdade, o casal já vivia junto há vários anos. A gravidez da apresentadora foi difícil, após vários tratamentos de fertilização e com dois abortos espontâneos. Décio, como já dissemos, fazia restrições à vida artística da apresentadora, que permaneceu afastada dos holofotes até o nascimento de seu primeiro filho, Marcelo. 



Após o retorno da apresentadora à televisão, os desentendimentos aumentaram e o marido de Hebe a acusava de se dedicar demais ao trabalho, o que teria prejudicado a sua gravidez (na foto acima, Hebe em sua residência no ano de 1968). As brigas foram constantes e acabaram levando ao fim do casamento em 1971. Três anos depois, Hebe casou-se com Lélio Ravagnani e o casal viveu junto até o ano 2000 quando Lélio faleceu. 



Após o nascimento do filho e apesar das objeções do primeiro marido, Hebe retorna à televisão em 1966 pela TV Record para o seu "Hebe aos Domingos". A atração chegou a alcançar a maioria absoluta da audiência e ficou no ar até o início da década seguinte (na foto acima, Hebe no auge de sua fase na TV Record em 1967). Hebe ainda teve passagens pela TV Tupi, TV Bandeirantes e a partir de 1986 no SBT. Em todos esses anos o seu público se manteve fiel e continuaria com ela até os seus momentos derradeiros. Nunca mudou o seu estilo, declarando sempre estar preocupada em ajudar pessoas, dar entretenimento, diversão, alegria e otimismo: "Diante das pessoas, eu não me sinto como entrevistadora; eu as admiro, eu vibro com elas, eu fico gostando e digo isso diretamente, sem reservas e sem receio de parecer ridícula".
O auge de Hebe Camargo na TV Record coincidiu com o endurecimento ainda maior da ditadura militar, a crescente repressão policial e as torturas, os chamados "anos de chumbo". O recurso à luta armada contra a ditadura ganhava força diante do recrudescimento do regime. Claro que nas entrevistas de Hebe, nenhuma observação política sobre aquele momento era feita, exceto "por acidente" ou para elogiar as ações policiais contra os "subversivos" de esquerda, mas sem explicar ao público as razões pelas quais lutavam. Segundo narra o jornalista e escritor Tom Cardoso, em seu livro "O Cofre do Dr. Rui" (editora Civilização Brasileira, 2011), quando esteve no sofá de Hebe, o ex-governador de São Paulo, Adhemar de Barros (um apoiador de primeira hora do golpe militar de 1964), referiu-se de forma indelicada ao presidente Castelo Branco. Ao ouvir da apresentadora que o presidente militar era uma "gracinha", Adhemar disparou: "Gracinha? Ele é horroroso, não tem pescoço". Pelo bom relacionamento que a apresentadora mantinha com os militares, nada de mais grave ocorreu com ela, mas Adhemar foi cassado logo depois, por outras razões. 
Durante o III Festival de Música Popular Brasileira de 1967, organizado pela TV Record, Hebe Camargo resolveu retornar aos seus tempos de cantora, para defender uma das canções inscritas, "Volta Amanhã" (de Fernando César e Mariah Brito). Hebe foi recebida com vaias e assobios na apresentação das eliminatórias, fato inédito em toda a sua carreira. Mas, ao contrário de Sérgio Ricardo, que foi vaiado no mesmo festival e jogou o violão contra o público, Hebe resistiu e foi até o fim interpretando a canção. Os colegas que a viram, afirmaram que ela encarou o acontecimento como um desafio e fez de tudo para não chorar. Dias depois, Hebe Camargo recebeu um telefonema do general Syzeno Sarmento, comandante do II Exército em São Paulo, que lhe prestou solidariedade. Sarmento foi o criador do Centro de Operações para a Defesa Interna (CODI), chamado depois de Departamento de Operações Internas (DOI) ou apenas DOI-CODI, órgão responsável pela detenção e tortura de presos políticos. 



Contudo, um fato ocorrido em outubro de 1968 envolveu indiretamente a apresentadora com a oposição armada à Ditadura Militar. Hebe Camargo tinha como vizinho o oficial do Exército dos Estados Unidos, capitão Charles Rodney Chandler, veterano condecorado da Guerra do Vietnã, a qual ainda estava em andamento (na foto acima, a antiga residência da apresentadora, na rua Petrópolis, no bairro do Sumaré em São Paulo). 



Na versão oficial, o militar de trinta anos era bolsista e estava no Brasil fazendo um curso na Escola de Sociologia e Política da Fundação Álvares Penteado, embora na época os jornais afirmassem erroneamente, que era na Universidade de São Paulo (USP). Dizia-se também que o capitão pretendia posteriormente, ministrar cursos em português na famosa Academia Militar de West Point nos Estados Unidos (acima, Charles Chandler em seu uniforme) e publicar um livro sobre o Brasil. Contudo, o oficial foi identificado pelos grupos guerrilheiros de esquerda como sendo espião da Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos (CIA em inglês) e colaborador da ditadura brasileira. Chandler era acusado também de dar treinamento a militares brasileiros e bolivianos, inclusive em técnicas de tortura. Vale lembrar que em outubro de 1968 completava um ano da morte de Ernesto Che Guevara (revolucionário cubano), exatamente por militares bolivianos treinados por oficiais estadunidenses. Embora não fosse comprovado o vínculo do capitão Chandler com a CIA (aliás, algo difícil de ser provado, pois afinal era uma agência de inteligência), o historiador Carlos Fico da Universidade Federal do Rio de Janeiro, soube por meio de depoimentos de indivíduos ligados ao aparelho de repressão da ditadura, que o oficial colaborava com a CIA por meio de informações. Por sua vez, era difícil, no contexto político da época, justificar a presença desse oficial no Brasil como sendo algo normal e natural. 




Na manhã do dia 12 de outubro de 1968, quando entrou em seu automóvel Impala e saiu de ré da garagem, um Fusca parou na traseira do veículo bloqueando-o. De dentro dele saiu o guerrilheiro Diógenes José Carvalho da organização Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) que deu seis tiros de revólver no oficial e em seguida, Marcos Antônio Braz de Oliveira da Aliança Libertadora Nacional (ALN) completou a execução com uma rajada de metralhadora. Charles Chandler morreu na hora (nas fotos acima, o capitão morto dentro do carro e a cena do atentado). Após a execução os guerrilheiros deixaram no local panfletos os quais diziam ser uma punição da Justiça Revolucionária pelos crimes cometidos no Vietnã. O livro que o capitão trazia consigo não deixa dúvidas, ao menos, de suas inclinações anti-comunistas, pois intitulava-se "Origem da Autocracia Comunista". A polícia necessitava esclarecer rapidamente o atentado pois tratava-se de um militar estadunidense e iniciou uma verdadeira caçada aos autores. 


Mas, havia uma pista e esta veio de dentro da casa da apresentadora Hebe Camargo. Cenira de Menezes Godoy, babá de Marcelo (foto acima), filho de Hebe, era tida como muito bisbilhoteira e naquela manhã notou uma movimentação em frente à casa. Cenira pegou um binóculo da patroa e verificou a presença estranha de um Fusca bege, anotando a placa. Era exatamente esse o veículo utilizado no atentado e o ato da babá poderia ser a solução do caso, mas não foi. A placa havia sido furtada de dentro do Detran-SP por um dos guerrilheiros e pertencia a outro veículo, de propriedade do dentista José Luiz de Andrade Maciel. Este pacato cidadão nada tinha a ver com o ocorrido. Porém, na ânsia de esclarecer o caso, a polícia deteve José e sua esposa, na época grávida de dois meses. Segundo um depoimento prestado pelo próprio Maciel ao jornal O Estado de S. Paulo em 1980, ele foi mantido incomunicável no Departamento Estadual de Ordem Política e Social (DEOPS) por trinta dias e submetido a uma verdadeira tortura psicológica. Era chamado para dar depoimentos durante a madrugada, o que o impedia de dormir. O governador de São Paulo, Abreu Sodré sabia de sua detenção e teria recomendado apenas que Maciel não sofresse tortura física. Sua esposa quase perdeu a criança na época. Mesmo depois de liberado, o casal teve de telefonar todos os dias para um delegado informando onde estavam e o que faziam. Com graves sequelas psicológicas, o casal acabou vendendo a propriedade em que moravam deixando a cidade de São Paulo, por temor de represálias. Tiveram de recomeçar a vida em outro lugar. Ainda em 1980 temiam falar sobre o assunto e mantinham o anonimato. 
Em janeiro de 1969, com a prisão de quatro guerrilheiros da VPR, barbaramente torturados, o caso foi esclarecido por meio do depoimento de um integrante desse grupo, Hermes Camargo Batista. Muitos membros da organização passaram a considerá-lo traidor, pois teria sido o único a revelar para a polícia os detalhes da ação, sem ter sido submetido a tortura. Marcos Antônio Braz de Oliveira, o que disparou a metralhadora em Chandler foi executado pouco depois em uma operação policial. O outro participante do atentado, Diógenes José Carvalho, foi preso, sofreu tortura e foi libertado em 1969, em troca do embaixador alemão que havia sido sequestrado. 
É possível especular qual seria a noção exata que a apresentadora Hebe Camargo teria do momento que o país e o mundo viviam, naquele final de década de 1960. Ela sabia da existência de uma luta entre as forças policiais e os opositores do regime militar. Tinha bom relacionamento com os generais do poder. De acordo com uma matéria sobre ela na revista Manchete, de setembro de 1968 (pouco mais de um mês antes do ataque contra o militar estadunidense), Hebe recebeu em seu programa um grupo de policiais que promoviam diligências contra as gangues de "assaltantes de bancos e terroristas políticos". A apresentadora solicitou aos mesmos que relatassem os momentos mais dramáticos, as perseguições, os perigos, os acertos e erros "daquela que foi uma das maiores caçadas humanas até hoje realizadas no Brasil" (Revista Manchete, edição de 21.09.1968, página 176). Portanto, uma evidência de que a escalada policial contra opositores do regime militar já havia sido desencadeada e o AI-5, decretado em dezembro, foi o ponto culminante dessa radicalização que levou aos "anos de chumbo". 
Hebe Camargo é uma personagem de grande significado na história da televisão, umbilicalmente ligada ao público que lhe foi fiel, mas também contraditória. Católica e de perfil conservador, acabou por admitir em uma entrevista à revista Veja em 2005, ter feito aborto em 1947, aos 18 anos. Isso ocorreu pelo fato de seu então namorado, o empresário Luís Ramos, dono da Rádio Excelsior e irmão de José Nabantino Ramos, proprietário do jornal Folha de S. Paulo (até o ano de 1962), não ter cumprido a promessa de se casar com ela, pois o mesmo já era casado (na foto acima, Hebe e Luís Ramos). O procedimento foi realizado em uma clínica clandestina, um local sujo, sem anestesia e onde Hebe sentiu dores terríveis durante o procedimento, algo que talvez lhe tenha deixado sequelas pela gravidez difícil que teve mais tarde. Hebe chegou a defender o aborto em casos de estupro e como uma decisão pessoal que as mulheres poderiam tomar, embora não recomendasse. 



Além disso, a apresentadora manteve ainda por muitos anos, o relacionamento com Ramos, como vemos na foto acima, raríssima, onde o casal aparece junto no casamento do humorista Carlos Alberto de Nóbrega em 21.12.1957, do qual foram padrinhos (da esquerda para a direita, Luis Ramos, Hebe Camargo, o noivo Carlos Alberto, sua mãe dona Alda e o pai, Manoel de Nóbrega). Foi com Luis Ramos que Hebe viajou pela primeira vez aos Estados Unidos e voltou com a ideia de deixar os cabelos loiros. Por outro lado, é necessário afirmar que tais fatos foram revelados pela própria Hebe Camargo em várias entrevistas a partir do ano 2000. Não se trata de algo de completo desconhecimento por parte do público. 
Deixo ao leitor as críticas e conclusões. Lembro que sempre é preciso ponderar, analisar, confrontar informações e, quando possível, estabelecer conclusões. Afinal esse também é o papel do historiador...
Última atualização: 13.08.2020
Crédito das imagens: 
as fotos coloridas do rosto de Hebe, de seus pais, da sua casa no Sumaré e de seu filho Marcelo com o cachorro são de David Drew Zingg para a Revista Realidade, edição de 1969.
Hebe com aproximadamente 4 anos: revista A Cigarra de outubro de 1963, página 10. 
Hebe nas comemorações do dia 9 de julho de 1954: revista Radiolândia, edição de 16.10.1954, página 29. 
Hebe aos 18 anos: revista O Cruzeiro de 19.07.1947, página 21. 
Hebe em trajes de banho: revista A Cigarra, julho de 1951, página 29. 
Hebe com vestido branco, de corpo inteiro e cantando em 1954: revista Radiolândia, março de 1954 (2ª quinzena), página 23. 
Hebe em 1967 com as flores: jornal "Última Hora". 
Hebe no programa "O Mundo é das Mulheres" da coleção Nosso Século 1960/1980, editora Abril, 1980. 
Hebe Camargo e Luciano Calegari na TV Paulista:
https://www.facebook.com/groups/memoriadatv
Foto de Hebe entrevistando Maurício de Souza: Curso Completo de Desenho Artístico de Jayme Cortez, volume 4, editora Divulgação Artística, página 432. 
Hebe no rádio diante do microfone e em 1957: várias edições da revista "A Cigarra". 
Foto de Hebe no porto de Santos em 1950, da cantora com dedicatória e entrevistando o ator Jonathan Harris,  site Memórias Cinematográficas:
https://www.memoriascinematograficas.com.br/2020/03/hebe-camargo-mais-que-rainha-da-tv.html
Foto de Hebe e Chacrinha e da apresentadora na Praça da Alegria: Wikipédia.
Foto do casamento com Décio Capuano: Pinterest.
As fotos do atentado contra Charles Chandler: revista O Cruzeiro de 1968. 
Foto de Hebe em sua casa no ano de 1968, com o marido e o filho: revista Manchete, edição de 21.09.1968, pag. 176. 
Foto de Hebe com seu Impala e na TV Paulista diante do microfone em 1963: revista O Cruzeiro.
Foto de Hebe com o seu primeiro namorado Luís Ramos:
revista Radiolândia, edição de 25.01.1958, página 61. 

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Os soldados de Esparta




Na Antiga Grécia a cidade de Esparta revestiu-se de características próprias. Enquanto a sua rival Atenas destacou-se como um grande centro econômico, político (onde surgiu a antiga democracia) e cultural, Esparta ficou mais conhecida pelos seus guerreiros (como na imagem acima, de uma escultura espartana feita em bronze de cerca de 500 a.C.) sempre prontos para o combate. E claro, se fosse preciso, morrer no campo de batalha para defender a sua cidade. O mais incrível é que estamos falando do mesmo povo grego e da mesma cultura, porém separados ao nível da organização política e econômica em cidades autônomas e independentes, as "póleis".
Contudo, a trajetória histórica de Esparta nos esclarece a tendência dos seus cidadãos para a guerra. A tribo que deu origem à mesma, os dórios, tinha uma tradição guerreira, sendo inclusive responsável pela introdução do uso do ferro entre os gregos. Foi pela força das armas que se instalaram no Peloponeso (região mais ao sul da península grega) e destruíram as antigas cidades locais, como Argos, Tirinto e principalmente, Micenas. Foi também pela força que dominaram os nativos da região do Peloponeso, os messênios, muitos dos quais foram escravizados. Portanto, pela forma violenta como chegaram, motivos não faltavam para os espartanos estarem sempre prontos para enfrentar uma guerra, uma rebelião ou uma revolta dos escravos. Aliás, estes últimos eram chamados de hilotas, uma antiga referência à cidade de Helos, destruída pelos dórios. 
A tradição da cidade atribuiu a um legislador lendário chamado Licurgo a criação das leis e a organização social de Esparta. Teria sido esse mesmo personagem que estruturou a educação do cidadão espartano, voltada principalmente para a atividade militar. Certa vez, quando questionado do motivo de Esparta não ter muralhas como outras cidades gregas, Licurgo respondeu: "Uma cidade não está desprotegida quando suas muralhas são feitas de homens e não de pedras". Esse mesmo legislador tornou os espartanos iguais ("homoioi" em grego) ao realizar uma redistribuição das terras e dos escravos (que na prática eram servos do Estado). A acumulação de riquezas foi suprimida por meio da instituição da moeda de ferro no lugar das que eram feitas de ouro e prata. O tempo livre dos espartanos seria ocupado na atividade de defesa da cidade e na preparação militar, que tinha início aos sete anos de idade.


De acordo com o antigo historiador grego Plutarco (46 d.C. - 120 d.C.), desde o nascimento os espartanos selecionavam os seus futuros soldados, rejeitando os bebês que nascessem com defeito. Os mais velhos se incumbiam da tarefa de eliminá-los, atirando os mesmos do alto do monte Taigeto. Os garotos aptos eram separados de suas famílias para viverem em uma espécie de acampamento militar, onde eram preparados para todo tipo de situação que ocorresse em um campo de batalha. Abandonados por um tempo na mata, eram obrigados a obter, por esforço próprio, a sua sobrevivência a partir dos recursos da natureza (na imagem acima, mata natural próxima à antiga Esparta). Os meninos eram estimulados inclusive a roubar se isso fosse necessário para saciar a fome. Plutarco narra um episódio em que um garoto teria roubado uma raposa e para que ninguém percebesse isso, guardou-a dentro de suas vestes. A mesma mordeu até as suas entranhas, mas o garoto não deu sequer um único grito de dor para evitar chamar a atenção dos comandantes. Quando estes perceberam o garoto já se encontrava morto e ainda com a raposa a lhe devorar. 
A disciplina era algo que todo espartano sabia respeitar ao extremo. Jamais uma ordem superior era questionada. Falar apenas o necessário (laconismo) era outra qualidade apreciada no espartano. A presença de estrangeiros não era bem vista e os espartanos pouco se deslocavam para outras partes, para não serem contaminados por idéias tidas como ruins.



As rivalidades e disputas entre os jovens eram estimuladas como forma de testá-los e prepará-los para a guerra. Aos 17 anos o soldado passava pela última prova que consistia em matar escravos ("Kriptéia"). Desse momento em diante, ele já podia ser considerado um soldado ou como denominou o historiador contemporâneo Perry Anderson, "cidadão-soldado" de Esparta (na foto acima, uma escultura de soldado espartano com armadura). O espartano permanecia nessa condição até alcançar os 60 anos, quando se retirava da atividade militar. Aos 30 anos podia constituir uma família e ter uma esposa. 
As mulheres espartanas, segundo a tradição antiga, gozavam de maior autonomia em comparação com as mulheres de outras cidades gregas, como Atenas. As espartanas praticavam esportes, exercitando-se na corrida, na luta, no lançamento do disco e do dardo, pois acreditava-se que mulheres saudáveis geravam filhos saudáveis. Até mesmo os filhos com outros homens seriam aceitos pelo espartano, desde que pudessem servir à cidade como soldados. O adultério não era imoral. Era permitido ao guerreiro que tivesse mérito e que admirasse a mulher de outro, solicitar a este que cedesse a sua esposa e que pudesse nela gerar um filho. Entre os soldados espartanos a homossexualidade também não era vista como algo abominável, até pelo contrário, fazia parte da formação do guerreiro tornar-se amante de um soldado mais velho. Bem, é isso o que nos relata Plutarco.
As Guerras Médicas, que evolveram os gregos contra os persas, se constituíram numa boa prova da coragem dos espartanos, imortalizada na batalha das Termópilas, onde 300 espartanos comandados pelo general Leônidas resistiram até a morte contra o avanço dos persas do imperador Xerxes (vivido no cinema pelo ator Rodrigo Santoro no filme "300"). Xerxes teria avisado aos espartanos que enviaria uma chuva de flechas que cobririam a luz do Sol e o dia se tornaria noite. Leônidas respondeu que podia enviar as flechas e cobrir a luz do Sol, algo que seria até bom, pois assim o combate se daria na sombra...
Na sombra ou não, os 300 espartanos lutaram até o último homem. Voltar para Esparta carregando uma derrota seria a maior desonra para o guerreiro espartano e para a família do mesmo. 



A partir do Período Clássico (século V a.C.) a tradição guerreira foi entrando em declínio e os soldados espartanos passaram a fazer parte de uma elite cada vez menor diante dos homens livres (periecos) e dos escravos (hilotas). A guerra contra Atenas (Guerra do Peloponeso) marcou o declínio dessa cidade e das demais, inclusive a própria Atenas, algo que possibilitou em seguida o domínio da Grécia pela vizinha Macedônia e a ascensão de Alexandre, o Grande. As ruínas de Esparta (na imagem acima o local da antiga cidade) são uma mostra do pouco destaque dado ao aspecto cultural e arquitetônico. "Espartano" tornou-se sinônimo de algo mais rústico e simples, sem luxos, bem ao gosto da antiga elite de guerreiros...
Para saber mais:
Plutarco. Vidas Paralelas. Editora Paumape, 1991, obra editada em 5 volumes. Nesse livro, Plutarco compara as figuras ilustres da Grécia e da Roma Antigas. No volume 1 ele estabelece um paralelo entre Licurgo e o rei de Roma Numa Pompílio (existem outras edições dessa obra). 
Crédito das imagens: As três primeiras foram extraídas da Coleção Grandes Impérios e Civilizações: Grécia. Volume I, Edições del Prado, 1996, páginas. 68 e 92. A foto das ruínas de Esparta está na História das Civilizações, volume  I, Editora Abril, 1975, página 83.